03/12/2016

"Desafio Infinito" é uma minissérie em três partes do (então) expert em histórias cósmicas Jim Starlin, àquela minissérie se seguiram outras duas, chamadas, em ordem cronológica, "Guerra Infinita" e "Cruzada Infinita". Juntas, as três obras formaram a "Trilogia do Infinito", e contavam a saga do titã louco Thanos e seu amor pela Morte e os esforços dos herois em detê-lo (e depois, em deter as consequências das suas declarações de amor.)


Mas a verdade é que, colocada de lado toda a questão cósmica e fantástica, algo se pode aprender dessa série, algo relevante para a vida. É disso que quero falar.

Como disse anteriormente, a primeira fase da "Trilogia do Infinito" chama-se "Desafio Infinito". Nela, ficamos sabendo do amor (amor mesmo) de Thanos pela Morte e do seu plano para conquistar a atenção e o amor de sua amada: matar metade da população do Universo. Para executar tão hercúlea tarefa, ele precisa reunir as seis Jóias do Infinito (Espaço, Mente, Alma, Realidade, Tempo e Poder), artefatos poderosíssimos que, juntos, tornam o portador onipotente. Durante a trama, Thanos consegue alcançar seus objetivos: une as Jóias na chamada "Manopla do Infinito" e, com elas, dissipa metade da população do Universo. Isso faz com que os heróis da Terra sobreviventes, bem como os campeões de outros mundos (como o Starfox, irmão de Thanos, ou Adam Warlock) se empenhem em deter o vilão e reorganizar tudo.


Naturalmente, depois das mais dramáticas batalhas, os heróis, tendo sido ajudados pelo acaso (a traição da neta de Thanos, Nebula), conseguem se apossar da Manopla e, em poder de Adam Warlock, ele a usa para consertar o caos gerado pelo titã louco, que acaba exilado.

Para evitar que tamanho caos se repita, Warlock toma duas decisões: primeiro, desfaz a manopla, e distribui as Jóias entre um grupo intergalático conhecido como "Guarda do Infinito", ficando cada membro com uma jóia (Gamora com a jóia do Tempo; Pip com a jóia do Espaço; Drax, o destruidor, com a jóia do Poder; Serpente da Lua com a jóia da Mente e o próprio Warlock com a jóia da Alma. A última jóia, da Realidade, foi entregue a um sexto e secreto membro, para que não fosse retomada). Já na segunda decisão, Warlock decide expurgar de si todo o bem e todo o mal, restando a plena neutralidade. Das duas decisões, esta é a que acarretará os maiores danos.


Pois então, ao "Desafio Infinito" se seguiu a "Guerra Infinita". Nela, vários heróis e vilões começam a ser atacadados por clones deturpados e malignos de si mesmos, as "contrapartes" (a mais famosa é a do Aranha, com seis braços e duas pernas). Inclusive Thanos (que vivia uma vida de fazendeiro no exílio pós-Desafio).


A verdade é que a parte má de Warlock, chamada Magus, intentava contra o universo, e só a improvável união dos heróis, da Guarda do Infinito e de Thanos poderiam (e fatalmente conseguiuram) vencê-lo.


Como se trata de uma trilogia, a terceira parte é um tanto óbvia: trata do embate dos heróis contra o lado bom de Warlock, chamada Deusa. Mas peraí: porque os heróis enfrentariam a parte boa de Warlock ainda se achando certos?


Em "Cruzada Infinita" descobrimos que a bondade de Warlock se personificou na Deusa que, criando o Ovo Cósmico (uma arma de poder imenso, quase equivalente à Manopla do Infinito) e convocando para seu exército todos os heróis que tinham alguma relação com o divino (Tempestade dos X-men e Thor, por exemplo) pretendia expurgar todo o mal do universo, iniciando uma verdadeira cruzada.


O problema, conforme descobrem os heróis sob o comando de Warlock, é que ao fazer isso a Deusa dizimaria toda a realidade. Era preciso evitá-la, claro.

Provavelmente (ou melhor, muito provavelmente) o que vou falar agora passe longe de ser o objetivo de Jim Starlin quando escreveu "A Trilogia do Infinito", mas o que é uma obra senão um suporte para múltiplas interpretações?

Diferente da primeira minissérie, as continuações ("Guerra" e "Cruzada" que são a mesma coisa em termos, com a diferença que a cruzada é uma guerra que se supõe santa) deixam de lado o niilismo de Thanos e seu amor impossível para se focarem no drama de Warlock, tendo de arcar com a decisão mais errada de sua vida, ainda que não menos bem intencionada. Onipontente, ao expurgar de si o bem e o mal, Adam esperava ter clareza em todas as decisões que, como Guardião da Jóia da Alma, teria de tomar dali em diante.

Mas a pergunta é: retirada a essência dual do homem, o que sobra? E mais, descompensada pelo reflexo invertido, o bem ainda é bom e o mal ainda é mau?

Assunto tangente no grande arco de Starlin, a conclusão que se chega é que, mesmo um sujeito que é considerado o homem perfeito (assim Warlock, que já se chamou simplesmente "Ele", é descrito) não pode existir de forma neutra. Afinal de contas, uma neutralidade humana (ou super humana) é impossível pois destrói a base: neutralizado, o homem se desumaniza. Vira uma pedra ou um metal, qualquer coisa que não um homem.

Esse dilema já estava presente lá nos estudos de Husserl, lá nos meados do século XIX, já apontavam: pode-se procurar (e imprimir) neutralidade em tudo, desde que o homem não esteja no meio. Perceba que Husserl, ao fundar sua fenomenologia, não pregava a dualidade bem/mal no homem (isso é coisa do Jung), mas a não neutralidade. Toda consciência escolhe, impõe significado próprio, altera e modifica. O mundo só pode ser neutro se não estivermos nele ou se considerarmos que, parte do mundo, nossa capacidade de "desneutralizar" as coisas é tão natural que só considerando-a é que podemos chegar a um estado "neutro".

Ao isolar o bem e o mal, Adam Warlock queria sempre decidir pelo "certo". Sem a noção de "errado" (provavelmente oriunda do bem e do mal conforme o cria) é possível ter certeza do certo?

Pode ser que você pense toda essa discussão como inútil, por dois motivos: o primeiro, porque Adam Warlock é um personagem ficcional. Segundo porque, mesmo sendo ficcional, ele sequer é humano!
Bem, para a primeira questão, vou sim a Carl Gustav Jung e Joseph Campbell, este especialista em mitologia.

Na opinião de ambos, um mito, uma história ficcional, fantástica e que encerra em si uma explicação para algo do mundo, serve também como tradutora de um conflito humano. Algo indiretamente indizível pode ser traduzido, representado num mito.

Sim, você não é bobo e percebeu que eu vou tomar a série de Jim Starlin como um mito. Sendo um, que questão humana ele encerra em si?

Justamente a dualidade bem e mal. Quem não se angustia quando, querendo fazer o bem, acaba causando o mal? Ou, quando se percebe desejando realmente o mal a outrem? Quem não desejou conseguir ser simplesmente justo? Quem nunca quis para si a neutralidade plena?
Jim Starlin encerra o caráter mítico de seu trabalho justamente ao colocar essas dúvidas no coração de Adam Warlock. Se no "Desafio..." Thanos fez tudo o que fez apenas por uma paixão, por amor, Warlock não quer repetir nada disso e se desumaniza¹.

Engraçado é que essa desumanização inverte as posições: nas séries subsequentes ao "Desafio...", Thanos (que conservara sua humanidade) deixa de ser o vilão e, redimido, é peça fundamental para o sucesso dos heróis (inclusive, é ele o depositário secreto da Jóia da Realidade), enquanto que o todo o problema foi gerado pelo próprio (e deseumanizado) Adam Warlock! E, ironia das ironias, Jim Starlin põe essa coisa não humana que Adam Warlock se tornou pra cuidar de qual jóia? A da Alma, oras!

Mas vamos inverter um pouco as posições. Quem nunca se percebeu querendo "corrigir" os defeitos de alguém? Lhe retirar o mau e usufruir apenas do que há de bom a se oferecer? Quantas vezes a gente não quis isso de nós mesmos?

O problema é que o ser humano, como disse Sartre, é um todo, e não uma coleção. Não se pode tirar uma parte ou outra, nem acrescentar nada. Cada sujeito é uma pessoa completa e bem acabada, seja nos defeitos ou nas qualidades.

Daí, pra se viver com uma pessoa, é preciso aceitar o "pacote completo": numa visão bem mercadológica, é preciso aceitar os defeitos (o mal) como sendo um preço a ser pago em prol das qualidades (o bem), sabendo que, sem essas coisas, não teríamos uma pessoa.

Teríamos uma pedra ou um metal.

E quem quer conviver com uma pedra ou um metal?

Nem Adam Warlock quis...

Depois dessa trilogia, tivemos mais uma minissérie: Abismo Infinito...
Adam Warlock e os remanescentes da Guarda do Infinito aliam-se ao Doutor Estranho, Capitão Marvel, Homem-Aranha e Thanos, o deus louco de Titã, para impedir que o universo sucumba diante do... Abismo Infinito.

Última parte da Saga do Infinito em 6 edições, só que puramente para ganhar dinheiro.

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